Coletivo Direito Popular

O punitivismo mata a advocacia

Como defender a presunção de inocência de nossos clientes se, diante do clamor público, nem mesmo a advocacia tem esse direito fundamental preservado?

Publicado em: Jota Principal, 31 de maio de 2025

Texto: Paulo Henrique Lima

Paulo Henrique é advogado e criminólogo. Doutorando em Sociologia e Direito (UFF). Mestre em Direito Penal (UERJ). Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia (Intocrim). Professora da Faculdade de Direito da UFF e educador popular.

O recente caso do advogado José Francisco Abud, encontrado morto em sua residência após enfrentar uma campanha de “cancelamento”, nos traz uma importante reflexão sobre o papel da OAB-RJ diante de casos em que há indícios de possíveis crises emocionais ou psicológicas.

Abud foi acusado de proferir ofensas (racistas e misóginas) em uma petição direcionada a uma juíza do TJRJ, tornando-se imediatamente alvo de uma “condenação” pública que ultrapassou a necessária solidariedade que se deve destinar à vítima. Pressionada pela opinião pública e por manifestações do Poder Judiciário, a OAB-RJ agiu com precipitação e, ao invés de adotar um procedimento apurador humanizado, suspendeu o advogado.[1]

Ao ter notícia de conduta antiética praticada por um advogado, atenta aos princípios que regem o Estado democrático de Direito, a OAB-RJ deveria ter agido com prudência, assegurando uma apuração séria e sensível, com o apoio dos serviços da Caixa de Assistência à Advocacia (Caarj), considerando a possibilidade de que, independentemente da gravidade do fato, o colega necessitasse de acolhimento e não de punição pública que poderia agravar seu estado de saúde mental.

Contudo, o que se viu foi o oposto: a Corregedoria da OAB-RJ moveu-se com velocidade incomum e, em cerca de 24 horas, sustentou a exclusão do advogado, que estaria justificada pela prática de “conduta incompatível com a advocacia“, que o tornou “moralmente inidôneo para o exercício da profissão”, pois cometeu “crime infamante que gerou comoção na sociedade”.[2]

Em menos de 24 horas, a instituição já havia publicado a notícia em seus canais[3], o que repercutiu na imprensa e nas redes sociais. Pelo curto intervalo, parece evidente que não houve investigação preliminar que justificasse a aplicação instantânea da medida mais gravosa que pode recair contra um advogado.

Sabe-se que, em regra, a advocacia é vítima de ofensas e não o contrário. Mas não se tem notícia de magistrados, promotores, delegados que tenham sido afastados, liminarmente, em cerca de 24 horas, por ofenderem advogado(a)s. Não se defende que os demais órgãos de classe repitam os erros da OAB-RJ, contudo, é notório que, dentre os órgãos de classe do sistema de justiça, a OAB-RJ tem sido a que assumiu postura mais punitivista contra sua própria classe.

A criminologia crítica nos adverte que uma manchete provoca mais exercício de poder punitivo do que uma investigação cabalmente concluída,[4] uma vez que o “clamor social” confunde vingança com justiça.[5]

Por isso, embora as ofensas sejam inegavelmente graves e condenáveis, é preocupante perceber que este sentimento tenha sido invocado por uma instituição que foi fundada para defender o Estado democrático de Direito, no qual a presunção de inocência se constitui como um limite intransponível à atuação do poder público e não se restringe ao âmbito processual penal,[6]  materializando-se não apenas como regra probatória, que transfere o ônus da prova ao acusador e assegura que a dúvida beneficie o réu e exige que eventuais condenações sejam devidamente fundamentadas,[7] mas também como uma regra de tratamento, assegurando que, ao longo de um processo sancionador (penal ou administrativo), todos tenham sua condição de inocente preservada.

Em situações normais, não é fácil crer que um advogado utilizaria um meio formal para tecer ofensas à magistrada responsável pelo julgamento de seus processos. Nessas circunstâncias, parece que o órgão de classe deveria agir com prudência, prestando solidariedade à vítima, mas sem deixar de acolher e oferecer ao colega apoio psicológico (que deveria ser franqueado a todos os advogados pela Caarj). Como defender a presunção de inocência de nossos clientes se, diante do clamor público, nem mesmo a advocacia tem esse direito fundamental preservado?

A classe enfrenta um cenário de profunda proletarização e precarização. O CNJ aponta que um magistrado custa em média R$ 68,1 mil por mês.[8] Enquanto isso, apenas 5% da advocacia aufere mais de R$ 26,4 mil. Diferentemente de outras profissões jurídicas, 64% dos advogados possuem renda individual que não ultrapassa cinco salários mínimos.

A precarização é tão grave que um terço (34%) de nossa classe possui renda inferior a R$ 2.640.[9] Esses dados foram expostos pelo estudo demográfico desenvolvido pela FGV e OAB, no qual percebemos ainda que 72% dos advogados atuam como autônomos e 26% desempenham outra atividade profissional.[10] Cerca de um terço dos advogados (29%)[11] não possui plano de saúde. É difícil sequer imaginar que dentre as demais profissões jurídicas exista um número significativo de profissionais que não gozem de planos de saúde.

A ausência de um sistema de garantias voltadas a proteger a advocacia faz com que a OAB reproduza as mesmas características do sistema de justiça criminal. Se a OAB-RJ não for capaz de proteger seus próprios quadros da sanha punitivista, quem será?

Por outro lado, esse caso nos comprova que o punitivismo e a hipocrisia são irmãos siameses. Recordemos a eleição (2025-2027) na qual as listas das chapas inscritas, ao serem confrontadas com as fotos do Cadastro Nacional dos Advogados (CNA), revelam que o processo eleitoral não cumpriu as cotas raciais, existindo várias chapas compostas por percentual de negros inferior aos 30% definidos pelo provimento 222/2023 do CFOAB. No entanto, o rigor punitivo que a OAB-RJ utilizou contra o colega não foi observado durante o processo eleitoral, em que não se tem notícia de nenhuma medida para repelir as fraudes das cotas de negros e negras.

Mesmo sendo ré na Justiça Federal, a instituição se nega a divulgar as listas com as autodeclarações raciais dos candidatos, o que dificulta o controle e a identificação das fraudes raciais nas eleições. Ademais, é oportuno frisar que a atual gestão da OAB-RJ se iniciou com uma demissão em massa ilegal que afetou mais de 300 trabalhadores e criou um elevador seletivo para “diretores e conselheiros” e outro para os funcionários, medida notoriamente discriminatória.

Enquanto isso, nas redes sociais, a OAB-RJ organiza palestras ministradas por pessoas brancas sobre a “discriminação por motivo de cor na jurisprudência do TST”, ignorando a necessidade de dar protagonismo à advocacia trabalhista negra.

Mulheres e pessoas negras têm obtido mais democratização de acesso na Ordem dos Advogados do Brasil. Porém, o mesmo não pode ser dito da seccional do Rio de Janeiro, onde o retrocesso da diversidade é cristalino, sendo a OAB-RJ a única seccional da região Sudeste em que a diretoria é composta exclusivamente por brancos.

Negras e negros representam 33% da advocacia brasileira,[12] mas no conselho efetivo da OAB-RJ, que é composto por 90 advogados, encontramos apenas sete pessoas negras (7,77%).[13] Já nos cargos de livre nomeação,[14] que totalizam 170 advogados, encontramos apenas 16 pessoas negras (8,82%). Em ambos os casos, a presença é ínfima.

A advocacia do país é formada por 50% de advogadas mulheres.[15] Apesar de a OAB-RJ ser presidida por duas mulheres (e a chapa eleita ter sido obrigada a respeitar a paridade por força de normas do Conselho Federal), no que tange à distribuição das presidências dos cargos de livre nomeação, também há baixíssima representatividade: as mulheres estão apenas em 56 das 170 vagas (32,94%).

Infelizmente, percebe-se que a OAB-RJ tem se tornado uma confraria branca de grandes escritórios, onde negras e negros seguem excluídos dos espaços de poder e a hipocrisia reina por meio de um teatro punitivo que finge combater racismo e machismo. Mas é a própria instituição aquela que mais preserva discriminações no sistema de justiça fluminense.

Se quisermos justiça e não vingança é preciso exigir mais que performances punitivistas: é preciso transformar a OAB-RJ em uma instituição verdadeiramente antidiscriminatória com práticas cotidianas. A OAB-RJ precisa repensar sua postura punitivista e lembrar-se de que, acima de tudo, sua função é zelar pela advocacia — e isso inclui, também, proteger advogados em crise, ainda que deles discordemos.


[1] CNN. “Resquícios de senzala”: Quem era advogado que foi racista com juíza no RJ. Publicado em 30.04.2025. Disponível em: < https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/sudeste/rj/resquicios-de-senzala-quem-era-advogado-que-foi-racista-com-juiza-no-rj/#:~:text=O%20homem%20era%20registrado%20na,3%C2%AA%20Vara%20C%C3%ADvel%20do%20munic%C3%ADpio >. Acesso em 08.05.2025.

[2] MIGALHAS. OAB/RJ pede exclusão de advogado que atacou juíza com ofensas racistas. Publicado em 22.03.2025. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/quentes/426844/oab-rj-pede-exclusao-de-advogado-que-atacou-juiza-com-ofensas-racistas >. Acesso em 08.05.2025.

[3] OAB/RJ. Corregedoria da OAB/RJ pede exclusão do advogado que fez ataques racistas a juíza em petição. Publicado em 21.03.2025. Disponível em: < https://www.oabrj.org.br/noticias/corregedoria-oabrj-pede-exclusao-advogado-fez-ataques-racistas-juiza-peticao >. Acesso em 05.05.2025.

[4] BATISTA, Nilo, “Só Carolina não viu” – violência doméstica e políticas criminais no Brasil. 2008.

[5] BATISTA, Nilo, Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 271 ss, em Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade, Rio, ed. Revan, nº 12, 2002.

[6] NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 8ª ed. Editora D’Plácido, Belo Horizonte, 2019.

[7] Sobre o Tema, vide NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. p. 265, 2ª ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2012.

[8] Conselho Nacional de Justiça, Justiça em Números, p. 94, Conselho Nacional de Justiça. – Brasília, 2024.

[9] OAB/FGV, Perfil Adv: 1º Estudo Demográfico da Advocacia Brasileira, p.76, coord: José Alberto Simonetti e outros. Brasília; Rio de Janeiro, 2024. ISBN: 978-65-5819-081-3.

[10] Ibidem, p. 77.

[11] Ibidem, p. 80.

[12] OAB/FGV, Perfil adv: 1º estudo demográfico da advocacia brasileira, p.33, coord: José Alberto Simonetti e outros. Brasília; Rio de Janeiro, 2024. ISBN: 978-65-5819-081-3.

[13] Vide lista nominal da chapa eleita, disponível em: < https://oabrj.org.br/sites/default/files/attachments/ana_tereza_basilio.pdf >. Acesso em 06.05.2025 c/c dados disponíveis no Cadastro Nacional dos Advogados. Através do site: < https://cna.oab.org.br/ >.

[14] Lista disponível em: < https://www.oabrj.org.br/comissoes >. Acesso em 03.05.2025.

[15] OAB/FGV, Perfil Adv: 1º Estudo Demográfico da Advocacia Brasileira, p.33, coord: José Alberto Simonetti e outros. Brasília; Rio de Janeiro, 2024. ISBN: 978-65-5819-081-3.

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