Foto: Patrick Marinho/Redes da Maré
Por Rafael Simões
Em agosto de 2024, o Complexo da Maré, localizado no Rio de Janeiro, foi mais uma vez cenário de intervenção e violência estatal contra os moradores da comunidade. Sob o pretexto de ilegalidade dos imóveis pela venda do crime organizado, o governo estadual determinou que cerca de 40 famílias, moradoras do conjunto habitacional conhecido como Cão Feroz, no Parque União, fossem violentamente expulsas de suas casas. Segundo habitantes da região, não houve um contato presencial da prefeitura do Rio de Janeiro, apenas uma notificação seguida de uma brutal operação de desocupação dos terrenos determinados. Assim, enquanto o poder público justifica ações com base em projetos de infraestrutura e
legalidade de terrenos, a realidade enfrentada por essas famílias expõe, mais uma vez, falhas históricas na garantia de direitos fundamentais, como o acesso à moradia digna.
Partindo de uma concepção histórica, as favelas no Rio de Janeiro surgem como consequência da exclusão social pós-abolição da escravatura, em 1888, seguida da falta de políticas públicas de integração dos ex-escravizados à cidade urbana. Baseando-se nisso, a grande massa da população recém-liberta começou a ocupar os centros históricos em busca de trabalhos dignos para sobreviver. Esse processo de urbanização desigual foi intensificado pela Reforma Pereira Passos, no início do século XX, em que o prefeito na época, inspirado nos modelos europeus de cidades, promoveu uma grande remodelação urbana que resultou na demolição de cortiços e expulsão de milhares de trabalhadores pobres da capital. Sem alternativas, essas pessoas foram empurradas para áreas de difícil acesso e fora dos olhos da elite, como os morros da cidade. Dessa maneira, é evidente que o Estado brasileiro, em todo o processo histórico do nosso país, falhou em garantir políticas de habitação adequadas, além de promover medidas de marginalização de um povo pauperizado, tornando as favelas um reflexo da desigualdade estrutural e da segregação habitacional, perpetuadas até os dias de hoje.
Atualmente, operações como a da Maré, contrapõe um direito fundamental, o direito à moradia, estabelecido pela Constituição da República Federativa do Brasil pelo art. 6º e incluído no rol dos Direitos Humanos pelos pactos Internacionais, dos quais o Brasil é signatário. Ou seja, sem oferecer quaisquer alternativas habitacionais dignas e sem aviso adequado, essas famílias foram colocadas em uma situação de extrema vulnerabilidade, ferindo o pressuposto da dignidade da pessoa humana.
Conforme os ensinamentos de Achille Mbembe, em seu livro Necropolítica (2011), podemos relacionar a desocupação das casas na Maré como um exemplo claro da aplicação da necropolítica estatal. No caso do conjunto habitacional Cão Feroz, o Estado não apenas descumpriu a garantia constitucional à moradia, mas impôs uma política de abandono e exclusão que expõe essas famílias à “morte social” e, para além disso, física e psicológica, pois tiveram suas vidas diretamente afetadas e destruídas, além da apropriação de pertences pessoais dos quais, muita das vezes, lutaram anos para adquirir. Neste sentido, a necropolítica estatal se manifesta através da gestão seletiva da vida, enquanto certas parcelas da população são protegidas e integradas no planejamento urbano, outras, como as comunidades da Maré, são deixadas à margem do poder público, sem nenhuma proteção e cumprimento de prerrogativas básicas. Portanto, a decisão de desocupar as casas sem diálogo ou garantia de realocação, revela uma lógica de controle que retira desses indivíduos não apenas o direito de habitar a cidade, mas também o de existir com dignidade.
A expulsão forçada das casas na Maré não é um evento isolado, todavia faz parte de uma longa história de violência de classe que estrutura a urbanização capitalista no Brasil. O enfrentamento da problemática das moradias “irregulares” nas periferias não será resolvida de forma punitiva, retirando violentamente os cidadãos de suas casas e deixando-os sem amparo, tal abordagem apenas evidencia ainda mais a lógica de exclusão, supressão de direitos e necropolítica dentro do sistema capitalista, que marginaliza a camada periférica dia após dia.
Dessa forma, o Estado, nos termos burocráticos do ordenamento jurídico, não deveria abdicar da sua responsabilidade para com a proteção dos Direitos Humanos de pessoas periféricas, pois sem esses preceitos, a perpetuação das desocupações violentas apenas reafirma a falência de um sistema que continua a privilegiar interesses políticos e econômicos em detrimento da vida dos seres.
Rafael Simões é aluno do curso de Direito da Universidade Federal Fluminense e membro da Clínica de Assistência Jurídica Popular Esperança Garcia
marilzaolimpio1317@gmail.com