Foto: Agência Brasil
Por Milena Ramos
Durante os últimos dois meses, foi-se amplamente noticiado o aumento exacerbado de queimadas em diversos estados do país, o que causou certa preocupação em setores da sociedade que se importam com a causa e também naqueles que se viram diretamente afetados por elas. Dentre esses impactos, estão a perda de grandes áreas dos biomas brasileiros e também a elevação da quantidade de pessoas com problemas respiratórios decorrentes da inalação da fumaça. A mídia, por vezes, recorreu ao argumento de que tais queimadas são cíclicas e naturais e, por conta disso, não deveriam ser certos “indivíduos” responsáveis por ela. É claro que alguns biomas, como o Pantanal, possuem um ciclo de queimadas naturais, as quais, inclusive auxiliam no processo de renovação da flora. No entanto, o que vem acontecendo no país é cíclico, mas não é natural.
Ciclos. Palavra importante para a compreensão dos recentes ocorridos. O Brasil, desde o ano de 1530, enquanto ainda era colônia, era responsável pelo fornecimento de matérias-primas, que inicialmente, eram direcionadas apenas à Portugal. Ou seja, assim que houve o início do período colonial, as áreas de vegetação nativa foram fortemente afetadas. As diferentes matérias-primas exploradas levaram à posterior divisão do período em ciclos, como o do pau-brasil, açúcar, café, ouro, algodão, entre outros. Apesar de o nome do ciclo mudar, havia algo extremamente comum entre eles: a degradação do meio ambiente para a obtenção de lucro por parte, inicialmente, da burguesia portuguesa e, posteriormente, da burguesia brasileira. Devido a esse processo de colonização pela via exploratória, o Brasil, mesmo após se tornar um país “independente” de Portugal, continuou na sua posição de dependente, uma vez que tinha como principal foco da economia a exportação de matérias-primas por meio das chamadas commodities.
Atualmente, muito se utiliza dessa história de um país agroexportador para se defender a continuidade desse processo, como se fosse algo benéfico a toda a população. É importante ressaltar que no início do processo de exportação de matérias-primas era utilizada a mão-de-obra escrava (indígena e africana) de forma majoritária e, mesmo com o fim da escravização, as condições dos trabalhadores assalariados nessas grandes fazendas destinadas à exportação não eram nem mesmo aceitáveis (parte devido ao tratamento de escravo que era dispensado aos trabalhadores negros, ainda que essa condição não fosse mais legal). Ou seja, uma pequena parcela da população – os grandes latifundiários – se beneficia com esse comércio, o qual era feito às custas da exploração de milhões de brasileiros pobres. Viva o agro!
Além dos prejuízos direcionados à população, há também os graves prejuízos ambientais que, como presenciado por nós hoje, voltam a prejudicar a população pobre, ainda que de maneira indireta. Diversas áreas da Amazônia, Cerrado e Pantanal estão embaixo das chamas. A Mata Atlântica, principalmente em São Paulo, mas também na cidade do Rio de Janeiro e em Nova Friburgo também apresenta diversos focos de incêndio florestais. Coincidência? Ciclo natural? Não. Capitalismo, exploração e predação. Desculpe o pleonasmo. Tais incêndios mostram o quão preocupado com o país está o agronegócio, na medida em que um bioma, como a Mata Atlântica, que só existe no Brasil, com uma diversidade imensurável é atacado por incêndios que visam a destruição mais rápida da floresta, já que o desmatamento é mais caro, mais difícil e mais fácil de ser rastreado.
Ademais, dentre as inúmeras consequências das queimadas, está o progressivo aumento do número de pessoas que, ou possuem problemas respiratórios e estes estão sendo agravados, ou estão passando a desenvolver por conta da constante exposição à fumaça proveniente das queimadas. Isso é alarmante se analisado de uma perspectiva individualista, pois as pessoas serão acometidas, sem necessidade por certas enfermidades, mas também de uma perspectiva coletivista, a qual leva em consideração o fato de que o Sistema Único de Saúde não está estruturalmente preparado para o recebimento de um grande quantitativo de pessoas com problemas respiratórios, fato que foi amplamente constatado durante a pandemia de Covid-19. Se, ainda, a análise for feita em uma perspectiva interseccional, constata-se que, com o SUS sem condições suficientes, a população mais pobre será mais afetada. A burguesia possui dinheiro para internação, exames e consultas na rede particular. Os trabalhadores precisam do SUS, pois, para eles, “não há alternativa”.
O agronegócio como responsável direto pelas queimadas já foi pontuado neste artigo diversas vezes. Porém, torna-se imperativo a demonstração prática de como as queimadas o impulsiona de maneira direta. O fato de que estão sendo queimadas diversas áreas de canaviais para como método de plantação, coloca-se um pouco equivocada, dado que o processo de mecanização ocorrido no país, principalmente com a Revolução Verde, tornou o uso de máquinas mais barato. No entanto, outras hipóteses parecem-nos mais plausíveis, como a queima de áreas na Amazônia e no Cerrado para a agropecuária e para o garimpo, dado que é mais barato e mais rápido. Todavia, não se pode esquecer das mudanças climáticas que afetam não só o Brasil, como o mundo inteiro, e fizeram com que haja um aumento progressivo da temperatura do planeta e também o fenômeno do EL Niño, que fez com que determinadas áreas ficassem mais secas no país. Isso não é um modo de eximir o agronegócio da culpa pelos incêndios, mas sim um meio de explicar o porquê os incêndios provocados de forma corriqueira por eles, agora se alastrou com mais força.
Diante da falta de medidas incisivas a priori, e, pelo contrário, da manutenção de privilégios ao agronegócio, o agro economiza, ou seja, há redução de gastos para os agropecuaristas e latifundiários, ou seja, para o setor privado. E, concomitantemente, aumento de gastos para o governo, o qual terá que arcar com as despesas elevadas nas áreas de saúde e também nos setores para conter as queimadas. Entende-se, portanto, que o Estado, composto pela classe dominante, afrouxa as medidas de prevenção e de punição dos provocadores de queimadas e de desastres ambientais, Mariana e Brumadinho são um claro exemplo disso, o que causa prejuízos para a própria estrutura financeira estatal, e, por que isso ocorre? Pois o Estado, como um instrumento de dominação de classe, seja por meio da criação de leis, da execução de políticas públicas e do direito penal, favorece, de forma constante, a classe dominante, ou seja, detentora de capital. Nessa perspectiva, apesar de ser responsável pela garantia do cumprimento das leis, isto ocorre de forma seletiva. Os grandes agropecuaristas não pagam impostos pelas commodities, e o pobre trabalhador que recebe mais de dois salários mínimos, deixa, de forma progressiva de 7,5% para cima de imposto ao governo. Direitos iguais para quem? Como diria Marx “Entre direitos iguais, decide a força”. Por força, lê-se quem detém mais capital.
Ciclos. Ciclos do capitalismo. Capital para o agronegócio, para os latifundiários, para as empresas privadas que comandam a saúde no país, para as farmacêuticas, para as empresas estrangeiras produtoras de insumos, para os empresários brasileiros, mas não para os trabalhadores pobres, mais afetados pelas queimadas.
Para o melhor entendimento acerca dessa questão, vale uma breve análise acerca das discussões de Pierre Dardot e Christian Laval sobre a sociedade neoliberal. Em seu livro “A nova razão do mundo”, os autores discutem acerca do processo de formação dessa nova razão do mundo, que seria a razão neoliberal, a qual, transporta a lógica da empresa tanto para o campo subjetivo, quanto para o campo estatal. Nesse sentido, o Estado se apresenta como uma empresa, na medida em que se comporta e atua, com relação às outras empresas, como uma empresa. Dessa forma, a atuação do Estado é voltada à lógica do custo-benefício, do desempenho, da prestação de serviços em troca de impostos, entre outros. Os autores ressaltam que é importante analisar o Estado não como um instrumento de dominação de classe, como o defendeu Marx no “Manifesto Comunista”, mas sim como uma empresa, que, ao lado das outras empresas privadas, realiza políticas macroeconômicas que beneficiam as empresas privadas. Segundo eles, “as lógicas das empresas comandam diretamente as agendas do Estado”. Essa co-atuação público-privada faz com que as normas, tanto internacionais, quanto nacionais-privadas, sejam voltadas à maior independência das próprias empresas durante o processo de produção das normas que deverão guiar o seu funcionamento. O Estado, na sociedade neoliberal, passa a ser “muito mais estrategista do que produtor direto de serviços”.
Tal lógica empresarial neoliberal que atinge o Estado pode ser observada na atual gestão do governo brasileiro e, principalmente, na que a antecedeu, principalmente no que diz respeito às empresas do agronegócio. Segundo o economista Gobetti, que é pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), os produtores rurais são a atividade que, nos últimos anos, obteve o maior nível de isenção entre os declarantes do IRPF. E em 2022, 460 mil pessoas declararam possuir como ocupação principal a produção agropecuária e conseguiram que 69,3% de suas rendas ficassem isentas. Conforme os dados apresentados pelo economista, a lei permite que, simplificadamente, apenas 20% do faturamento dos produtores faça parte da base de cálculo do tributo. “Essa é a regra aplicável ao ruralista que opta por declarar a renda da sua atividade como pessoa física.”
Semelhante ao apresentado por Pierre e Dardot em seu livro, o governo brasileiro, por meio de flexibilizações tributárias, fornece ao ruralista a opção de escolher como declarar o imposto de renda e, caso esse seja feito por meio de um CPF, estará isento. A justificativa para essa medida foi a de que os pequenos agricultores seriam beneficiados por ela, porém, na prática, os grandes latifundiários se aproveitam dessa situação para exportar commodities agrícolas e não pagar os devidos impostos por isso. Isso leva, não só a uma redução da arrecadação, como também à criação de uma política de austeridade fiscal e teto de gastos, também característicos do neoliberalismo, que, ao reduzirem os investimentos nos serviços públicos utilizados pela população mais pobre, como saúde e educação, os trabalhadores ficam cada vez mais vulneráveis, como, por exemplo, nesse período das queimadas. E, sobre o crescimento da economia, apesar de a renda ter aumentado nesse período de 2022, ou seja, de o bolo ter assado, ele não foi dividido com o maior percentual da população, como propunham economistas muito “competentes” nas décadas de 70 e 80.

Para finalizar essa parte, é mister o esclarecimento de alguns pontos que ainda são fomentados no debate público como justificativa para que o investimento na agropecuária continue de forma massiva. O primeiro deles é de que o agronegócio alimenta a população. Qual população? A de porcos na China? Porque a população brasileira é alimentada, majoritariamente, pelos agricultores rurais. Conforme dados divulgados pelo IBGE em 2023, “a agricultura familiar responde por cerca de 70% dos alimentos consumidos no Brasil”. O segundo deles é que o agronegócio tem grande participação no PIB do governo brasileiro. Dados do IBGE referentes ao primeiro trimestre de 2024 demonstraram que o agro não só não tem grande participação no PIB, como o tem de maneira expressamente irrelevante(1,79% do PIB total), se comparado ao setor de serviços.
Após essa análise um pouco mais ampla acerca da situação das queimadas no país, percebe-se quão imobilizada está parte da população perante os malefícios do agronegócio. Enquanto as queimadas acontecem, há diversas mobilizações que visam à mitigação dos efeitos das queimadas, mas, não são radicais, na medida em que não atingem a raiz do problema, que é o agronegócio, que é o neoliberalismo, que é o capitalismo. Acerca dessa aceitação do modo de produção capitalista por parte dos indivíduos, Mark Fisher, em seu livro “Realismo Capitalista” trata acerca da questão de o capitalismo ser hegemônico de um modo que os indivíduos não enxergam mais outra alternativa, que não o capitalismo. a expropriação, a exploração, a dominação e a depredação são vistos como parte da sociedade, e, portanto, são quadros irreversíveis. Tal pensamento de conformação é reforçado pelos grandes capitalistas e também por alguns sociais-democratas que, apenas enxergam um horizonte de mudança dentro do atual sistema. Para resumir esse pensamento, uma frase muito pertinente é a proferida pela repugnante ex-primeira-ministra do Reino Unido Margaret Thatcher “There is no alternative” (Não há alternativa).
Nessa perspectiva, ainda que ações de ajuda sejam realizadas, assim como as crises do capitalismo, as crises climáticas são cíclicas. A cada crise, a população, a vegetação e os animais são mais afetados e, progressivamente, pode-se alcançar um patamar de destruição que não pode mais ser revertido. Nessa lógica, é de suma importância o apoio aos movimentos sociais, como o MST, que buscam mitigar o problema na sua raíz, defendendo, assim, a punição dos responsáveis e a realização de uma reforma agrária ampla no país, a fim de que, assim, os verdadeiros produtores de alimentos (pequenos agricultores) alimentem a população brasileira.
Portanto, entre os ciclos econômicos do Brasil e as crises climáticas atuais pode-se estabelecer uma forte conexão. Os proprietários rurais que há anos exploravam a mão-de-obra escrava e servil, hoje exploram os trabalhadores assalariados que, com as queimadas, tornam-se os principais afetados por seus efeitos. Esses, apesar de
necessitarem de combate rápido, não são o ponto-chave da questão, pelo contrário, são efeitos de um sistema propagado e reforçado pelo Estado, pelos empresários, pelos latifundiários e por certos indivíduos beneficiados pelo sistema que, conformistas com a realidade atual, a qual é perpetrada como a única possível, não propõem reformas radicais do capitalismo. Logo, é mister o apoio aos movimentos sociais radicais, que lutam por mudanças significativas no Estado e na sociedade, e aos trabalhadores, os quais sofrem demasiadamente com as catástrofes climáticas, com os problemas de saúde advindos dela e, consequentemente, com as medidas de austeridade fiscal que virão com o novo teto de gastos. Mas isso é assunto para um outro artigo.
Milena Ramos é aluna do curso de Direito da Universidade Federal Fluminense e membro da Clínica de Assistência Jurídica Popular Esperança Garcia
